sábado, 10 de maio de 2014

Motocicletas Chinesas - Fatos e Mitos - Parte II

** Por Arlindo Romero, para a Revista Motociclismo

Depois de abordar o potencial da indústria de motocicletas na China, falaremos um pouco da cultura e do cotidiano do motociclista chinês. Para explicar a “cultura motociclística chinesa”, sem a pretensão de que concordem ou discordem, é importante esclarecer o que é cultura. Para isso, ainda não há nada melhor que um dicionário:
Cultura: sf (lat cultura) 1 Antropol.- Es­­ta­­do ou estágio do desenvolvimento cultural de um povo ou período, caracterizado pelo conjunto das obras, instalações e objetos criados pelo homem desse povo ou período. 2 Sociol.- Sistema de ideias, conhecimentos, técnicas e artefatos, de padrões de comportamento e atitudes que caracteriza uma determinada sociedade.
Antropologicamente falando, a cultura chinesa tem mais de 4 mil anos e é vista como a civilização mais antiga do mundo com existência contínua. Foi um império até 1911 e há mais de 60 anos é uma república socialista.
Já sob o ponto de vista sociológico, a cultura motociclística de lá tem pouco mais de 30 anos. Se no Brasil, o país das diversidades e com uma história motociclística de mais de cem anos, ainda nos segregamos entre “motociclistas e motoqueiros”, imaginem como é a vida sobre duas rodas por lá! 
Para começar o tráfego de motocicletas a combustão, independente do modelo ou cilindrada, é proibido no centro de mais de 160 grandes cidades, incluindo a capital Pequim. Neste sentido existe um “incentivo” para que as motos só sejam usadas nas áreas rurais. Não importa se você pilota um velho scooter ou uma potente e novíssima 1 800 cm³, autoestradas nem pensar! Somente as pequenas estradas vicinais são abertas às motocicletas. 
Sob toda esta censura federal, algumas cidades são ainda mais restritivas. Em Pequim, por exemplo, o tempo de vida de uma moto é de 11 anos, depois ela deve ser destruída ou vendida para outra cidade. Como não se emitem novas placas, cada nova moto que entra em circulação “herda” a placa de uma velha que foi destruída ou “extraditada” para o interior. Em alguns casos a placa custa mais caro que a própria moto. As marcas “Premium” compram pequenas motos velhas para oferecerem seus produtos já emplacados e liberados para circulação, questão de “superar as expectativas do cliente”.
Ainda em Pequim, existem dois tipos de placas: “A” e “B”, com diferentes restrições de circulação, sendo que a “A” é mais "liberada". Moral da história: uma placa “A” chega a custar quinze vezes mais caro que uma “B”. 
Em Guangzhou, berço da indústria automobilística, a situação é ainda mais difícil. Moto nenhuma circula em lugar nenhum e ponto. Além disso, para abastecer é preciso mostrar os documentos da moto em dia e a habilitação. A única grande cidade da China em que as motos ainda são vistas por todo lado é Chongquing, afinal como proibi-las na cidade em que mais se produz motos no mundo? 
O sistema de habilitação na China é bem simples e, a exemplo (mau exemplo) do nosso, não faz distinção nem de cilindrada nem de potência. Basta ter 18 anos, pagar as taxas e fazer os exames, que obviamente são em... Chinês. Isso nos leva a outro tema interessante: estrangeiros podem pilotar na China? Claro, desde que tenha uma habilitação... Chinesa! A China não assinou o tratado de Viena, portanto, não reconhece uma habilitação internacional e só emite uma local para estrangeiros com visto de permanência superior a 90 dias.
Só existe um delito pior do que dirigir embriagado, que leva à cassação imediata da carteira, é se envolver em um acidente sem ser habilitado. Neste caso, independentemente da culpa, são 15 dias de detenção.
A essa altura da matéria tem gente que fechou a revista, tem gente querendo organizar um protesto na porta do consulado chinês e tem gente se perguntado: o que eu tenho a ver com isso e que diferença isso pode fazer na minha moto?
Os primeiros, não desanimem, a última parte do especial será mais positivista. Aos do segundo grupo, mantenham a calma, a situação é bem pior e aqui estou apenas resumindo. Se você está no terceiro grupo é porque tem ou pretende ter uma moto chinesa, neste caso, preste mais atenção ainda daqui para frente.
Como dissemos no início, as primeiras motos chegaram por aqui há mais de cem anos e, de lá para cá, têm se tornado cada vez mais populares, acessíveis e frequentes no nosso dia a dia. Em função disso, praticamente todos os que trabalham no segmento motociclístico por aqui, além da formação profissional necessária, possuem experiência de usuário, convivência, intimidade com as motocicletas. Desde o mais jovem balconista de uma loja de motopeças até o mais experiente engenheiro de fábrica, todos vivem da e para a motocicleta, isso amigos, faz toda a diferença. 
Estive em centros de pesquisa e conversei com engenheiros capacitados, capazes de me explicar detalhadamente o porquê de um modelo “shimar” (vibrar na frente) mais do que outro; mas nenhum deles jamais sentiu “saudades de casa” ao perder a frente de uma RD na troca de segunda para terceira em menos de 10 segundos e a mais de 100 km/h. 
Saber, através de sofisticados testes em câmaras de nevoa salgada, exatamente quantas horas uma buzina irá sobreviver antes de enferrujar, e nunca ter mudado a posição de um componente que “pegava água” em sua própria moto, gera excelentes buzinas mal posicionadas. 
Para preencher esta falta de “conhecimento prático” de suas equipes, a indústria chinesa encontrou uma ótima solução: atravessou o mar, foi até o Japão e contratou todos os profissionais disponíveis em função da crise na indústria japonesa, que, aliás, todos sabem quem causou.
A mais importante fonte de informações técnicas sobre um produto é a “garantia de fábrica”. Ela expõe todos os erros de projeto, de fabricação, de montagem e de uso que os testes e simulações não foram capazes de prever e revelar. Sem leis específicas de proteção, poucas oportunidades de usar o veículo e quase nenhum conhecimento de causa, os clientes chineses nunca reclamam sua garantia. 
Em função disso, as principais marcas estão mudando uma das mais atrativas estratégias de preços para exportação: dar grandes descontos no preço de custo e repassar a responsabilidade da garantia para o importador. Eles perceberam que desta forma só tomavam conhecimento dos problemas quando já eram casos de “PROCON” aqui no Brasil.
Se não estão nas grandes cidades nem nas estradas, onde andam as mais de sete milhões de motos vendidas anualmente no mercado interno chinês? Nas áreas rurais, onde, aliás, vive 60% da população. Isso mais uma vez tem reflexo no produto que chega até aqui. Esse “DNA” off-road pode ser percebido nas relações de transmissão curtas, quase sempre inadequadas para nossas ruas e estradas, e que fazem as motocicletas trabalharem sempre em altas rotações, transmitindo elevada vibração.
Uma motocicleta é um produto muito mais complexo do que uma TV, um computador ou uma máquina de terraplanagem, pois envolve um forte componente emocional no seu uso e, portanto, na sua concepção. As principais marcas que já entenderam essa demanda estão procurando instalar seus departamentos de pesquisa e desenvolvimento de produto fora da China. E assim aproveitar toda a cultura motociclística que ainda lhes falta. 
Na próxima parte do especial, vamos “desvendar” mais alguns mistérios e propor um “manual da boa compra” para ajudá-los na hora de escolher por uma moto chinesa, até lá.

Ps.: Tenho 50 anos, aprendi a andar de moto aos 12 anos de idade em uma “enorme” Honda CB 125 Twin. Minha primeira moto foi uma Jawa 175 e já pratiquei quase todos os esportes possíveis sobre uma motocicleta. Mais do que motociclista ou motoqueiro hoje sou um ser de duas rodas.

Esta é a segunda parte do especial "China: Fatos e mitos". A terceira parte será publicada neste Blog no próximo sábado (10/05).

*Esta reportagem foi publicada originalmente na edição nº 181 da MOTOCICLISMO. Por este trabalho, o consultor Arlindo Romero recebeu "Menção Honrosa" na edição 2013 do Prêmio Abraciclo de Jornalismo, na categoria Revista.

Para ver a primeira parte desta reportagem, clique aqui!


Um comentário:

  1. Ser um ser de duas rodas indica que caiu de moto, perdeu as pernas e hoje anda de cadeira de rodas...brincadeira gente ! Muito bacana a matéria e é interessante como se pode analisar as coisas quando se sabe sobre o que está falando, parabéns a quem fez o estudo.

    ResponderExcluir

Quer comentar? Clique aqui!

Dinossauros Motogrupo